Já comentei sobre o evento e minhas outras experiências dentro dele de forma mais extensiva em um vídeo que está disponível no meu canal, e pode ser apreciado pelos fãs do audiovisual aqui, então, pretendo ir direto ao ponto nessa singela introdução do assunto de hoje.
É rotineiro que, em todo encontro desse tipo, me pareça super divertido fazer um esforço para visitar autores e ideias com as quais não tenho familiaridade, acho uma excelente oportunidade de aumentar meu repertório e de, ocasionalmente, adquirir novos vícios. Me chamou atenção, nesse sentido, o estande de uma tal "Trinca Editorial", que era bastante vistoso e focado em livros clássicos, com os quais tenho estado fascinado nos últimos meses. Particularmente, li várias das obras do Marquês de Sade e a linguagem rebuscada que, no catálogo dele, é reunida com algumas das maiores brutalidades que a humanidade pode conceber, despertou em mim um real fascínio. Isso foi o suficiente para que eu entrasse e decidisse dar uma olhada no que ali era oferecido, apesar dos preços não parecerem nada convidativos.
E aí, no meio de um monte de livros pelos quais eu teria que oferecer um pedaço da minha epiderme como entrada para adquirir, estava "A Rainha do Ignoto", de Emília Freitas. Quase 300 páginas, sendo oferecidas por modestos dez reais. Como sou extremamente pão-duro e tenho muito amor ao meu dinheiro, eu, ainda não contente com a promoção, conversei com uma das vendedoras sobre o livro. Me foi informado que era uma ficção científica brasileira pioneira no gênero e que possuía ideias extremamente disruptivas para a época, sendo publicado no final dos 1800 e, de acordo com a simpática vendedora, extremamente bem escrito.
E, foi assim, que conheci o livro mais legal que li esse ano, ao menos até o momento. Isso é o que decidi compartilhar com vocês a respeito dele.
A obra começa lenta e bastante caprichosa, quase como se convidasse os leitores mais apressados a se retirar. O efeito disso vai depender de quem está falando, no meu caso, ocorreu que eu, antes de chegar na marca das cem páginas, tomei algumas pausas na minha leitura, o que pra mim não é usual. Uma boa ajuda que a autora faz para possibilitar a leitura espaçada que muitas vezes a obra pede é a divisão em capítulos pequenos, que são mais de cinquenta nas pouco menos de 280 páginas. Dessa forma, cada um tem a chance de encarar uma leitura densa no seu próprio ritmo, bem diferente dos livros do Marquês, que no geral possuem capítulos infinitos, com excessão dos que são coletâneas de contos.
Emília Freitas pode não ter se tornado um nome tão conhecido quanto deveria para a literatura nacional, agora, é inegável que ela escreve PRA CARALHO. É uma riqueza de vocabulário e composição narrativa tão grande que, muitas vezes, pede a leitura e releitura de seus trechos. Me peguei voltando às mesmas frases algumas vezes e encontrando nelas novos sentidos, e eu amo demais livros que me fazem pensar imensamente, mesmo que as vezes sobre poucas palavras. Em "A Rainha do Ignoto", ao passar dos empecilhos iniciais que seu ritmo e sua escrita "intimidadora" ditam, temos MUITO o que pensar.
O livro tem em sua parte inicial um cenário de interior do Ceará, focado em causos de família, intrigas amorosas e coisas do tipo, e tendo a presença de um elemento oculto que vez ou outra interfere nas histórias que estão sendo contadas. Me encantou a forma como a autora descreve aquele cenário, dando detalhes para eventos religiosos, modismos da região e usando e abusando das figuras de linguagem e dos ditados de época, que são super charmosos na minha opinião. Às vezes me pergunto quando foi que paramos de ter um vocabulário tão divertido na nossa própria língua e passamos a usar 500.000 expressões em inglês por segundo, e, embora saiba vagamente da resposta, ela não deixa de me entristecer.
É apresentado desde o princípio que a desilusão amorosa parece ser o tema favorito de "A Rainha do Ignoto", e é um texto que não tem a menor cerimônia em apresentar estes conflitos da forma mais extrema possível, em muitos dos casos levando a consequências que podem chocar alguns leitores. Na parte do meio, quando somos apresentados à sociedade do "Ignoto" e às explicações de alguns dos mistérios que permeam a obra, começamos a entender melhor o que a autora quer dizer. Temos aqui um livro verdadeiramente revolucionário em muitos aspectos, sendo talvez o maior deles a profunda crítica à posição das mulheres na sociedade brasileira da época. A apresentação do amor e de seus pontos baixos como a destruição da vida de muitas das personagens do livro evidência o papel que Emília Freitas tanto quer criticar, o da mulher como subalterna e como ser que vive à mercê das vontades dos outros para possuir o mínimo de felicidade e realizações.
Ao mesmo tempo, quase que em uma nota tristemente irônica, a autora percebe que, apesar de toda a problemática que a estrutura oferece ela ainda é, naquele momento, a melhor forma de retirar um pouco que seja de felicidade de uma vida que se caracteriza como miserável.
"- Acha então que Helena pôs hoje o pé no primeiro degrau da felicidade?
- Não sei. Julgo apenas que fora do amor não há para a mulher grandeza ou felicidade possível! Julgo também que a mais ambiciosa de ouro e de glória não trocaria por uma coroa de louros a grinalda de flores de laranjeira do dia de seu noivado."
O cerne feminista do livro é totalmente interessante e contemporâneo por não colocar a figura do homem como antagonista, mas sim a construção social que existe encima dela e a forma como a sociedade a trata. No bando do Ignoto, as posições de poder são controladas por mulheres, e suas aventuras em diversos estados do Brasil, que permeam a história de boa parte do livro, se resumem a um acolhimento de almas destruídas e amargadas pela estrutura que à época existia, e muitas vezes do trabalho de reintegração. Esse trabalho não tem o privilégio de ignorar a forma como a sociedade se moldava, e, em diversos momentos, a autora por isso se lamenta.
"Era meu desejo que não amasses nunca, mas como já amas, ouve o conselho de uma amiga à borda da sepultura: não consideres muito este cruel sentimento... zomba dele logo que começar a zombar de ti."
Agora, torna-se oportuno comentar sobre a parte mais interessante de toda a obra, a própria Rainha que aparece no título. Apresentada primeiramente como uma figura quase que mística e intocável, tendo apenas uma pitada melancólica pairando seus ares, durante a leitura, temos um trabalho magnífico do lado humano e flagelado dessa personagem. Ela faz o bem a todos e busca se apresentar como quase que uma grande filantropa, no entanto, em seu particular, confessa que seus atos de bondade são quase que um capricho, um instinto, muitas vezes não possuem bússola moral, e isso a incomoda. Os comentários melancólicos sobre o amor que permeam toda a obra, e que na maioria das vezes são deferidos pela própria Rainha, servem como uma janela para seu passado triste que a leva a realizar suas ações durante o livro, quase como se a mesma se enxergasse em todos que passam pelas dificuldades.
Ela serve como a ponte da ficção com a realidade dentro da história, e faz esse papel de forma maravilhosa sendo, ao mesmo tempo, a melhor personagem de longe. Ainda por cima, muito sobre ela fica a cargo da interpretação do leitor, o que traz uma camada de curiosidade e de espaço pra discussão incrível. Eu vejo a forma como a obra trata a paixão, como um sentimento cruel do qual não se pode escapar e que, principalmente nas mulheres da época, serve como um grilhão, quase que como uma projeção pessoal da autora, isso pela frequência com a qual aparece e pela rigorosidade quase que pessoal na qual é descrito. No entanto, sobre isso, a gente provavelmente nunca vai saber, já que nem mesmo o rosto de Emília Freitas é por nós conhecido. Ficou apenas a arte, o que talvez seria o sonho de um bom escritor.
"Elas remavam céleres entre as vastas gargantas dos rochedos e meteram-se a bordo do Tufão, fronteiro ao Grandolim; mas, quando se preparavam pra fazer fogo, este manobrou com tal perícia que elas não tiveram tempo de evitar a abordagem, e a marujada caiu sobre o convés erguendo as machadinhas com gritos de ameaça; mas, no ponto de desfechar o golpe, atiravam com elas ao chão e caíam nos braços da pretendida inimiga, rindo, tagarelando, cheias de entusiasmo.
É assim a guerra das mulheres."
Ainda, na reta final, encontra-se uma crítica à forma como a religião é tratada como comércio que é tão atual que chega a ser preocupante. A Rainha é caracterizada como pragmática quanto à religiosidade, em um livro onde a autora faz questão de pintar a sociedade brasileira como completamente entrosada com ela, seja para o bem ou para o mal. Se Emília Freitas provavelmente gostaria muito de ter vivido alguns anos depois, para ver tantos de seus anseios serem ao menos mitigados, provavelmente teria ainda muito o que dizer nesse aspecto.
Acho que a única coisa que fica meio esquisita na história toda é a forma como o mundo de fora consegue se infiltrar no universo do Ignoto, que não vou "spoilar" diretamente aqui, mas acho que especificamente o fato de que aquilo nunca foi pela Rainha percebido não combina nem um pouco com a caracterização e com o cuidado que ela aparenta e demonstra ter para com sua tripulação. Mas, diante de tantas questões interessantes aqui apresentadas e de tantas outras que posso não ter aqui escrito ou mesmo não ter reparado, afirmo que temos um clássico que realmente deveria ser mais apreciado e discutido.
E, enquanto vocês pensam se vão querer apreciar ou não, eu os aguardo por aqui em um próximo texto!
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